Ou, o dia que eu descobri que pombos não são legais!
Lembro de um dia de quando tinha 8 anos. Nessa época eu já sabia que tinha algo de diferente em mim, tinha um desejo incontrolável por ser “normal”, e foi naquele ano que eu comecei a observar o comportamento das pessoas e replicar. Minha mãe conversava com o marido de uma irmã dela, na porta de nossa casa. E eu, do lado, observando a conversa, tal qual uma cientista analisando um evento, buscando padrões na interação. Nossa vizinha da frente havia acabado de fazer uma obra em sua casa que mudou radicalmente o telhado. Agora ele era bem alto, em três camadas que se sobrepunham formando nichos entre um e outro, com uma estrutura de ferro na lateral. Diante disso, o marido da minha tia sorriu e disse à minha mãe: “Telhado lindo! Igual o de uma rodoviária, ótimo para criar pombos!” Minha mãe sorriu concordando.
Havia lido, em uma das muitas vezes que me refugiei na biblioteca da escola durante o intervalo, que para fazermos amigos deveríamos elogiar as pessoas. Coincidentemente, a vizinha saiu nesse exato momento da conversa. Respirei fundo, reuni toda minha coragem e bradei a plenos pulmões: “Que belo telhado, igual o da rodoviária!” Antes que pudesse elogiar a criação de pombos, fui duramente repreendida pela minha mãe que me colocou pra dentro de forma ríspida. Pude ver ela pedindo desculpas sem parar à vizinha, seu rosto estava corado. Meu tio se despediu apressadamente, minha mãe entrou e foi direto pra mim perguntar o que eu tinha na cabeça.
Demorei ainda alguns anos para aprender o que eu tinha feito de errado naquele fim de tarde. Aparentemente dizer que alguém tem o telhado de rodoviária não é um elogio, e as pessoas não querem criar pombos! Mas as coisas que minha mãe me disse, e como eu me senti naquele dia, até hoje não esqueci.
Incrível como a gente consegue transformar algumas coisas!
“Quando você não tiver nada de bom para falar, fique de boca fechada”.
Eu ouvi essa frase a primeira vez naquele dia. Eu sempre falo para as pessoas que não gosto de conflitos e não teço críticas, porque a minha mãe me ensinou a só falar coisas boas e ver os pontos positivos, pois o mundo já está cheio de negatividade e gente para criticar. Mas essa é a versão suavizada da história.
Na verdade, aqueles sentimentos de inadequação, de confusão, de frustração, de culpa ainda moram em mim, e eu os sinto, às vezes, apertando minha garganta e mareando meus olhos. A verdade é que eu cresci achando que eu era uma pessoa ruim, que machucava as pessoas intencionalmente, e que se eu não me esforçasse para agradá-las, elas não iriam gostar de mim. E com razão! Porque eu não merecia ser amada. Como alguém ruim que machuca as pessoas merece ser amado? Não! Merece castigo, merece passar a vida se escondendo, sofrendo, encolhido para caber em um personagem, pois as pessoas não merecem viver com alguém tão vil.
Ainda faço terapia para tentar dissuadir minha mente do parágrafo anterior, tenho melhorado um pouco a cada dia.
De todas as frases que os autistas escutam, a que mais me afeta é a “não tem cara de autista”. Como eu queria ter uma cara de autista! Talvez se eu tivesse um vilão, talvez se eu tivesse algo para odiar, algo para culpar... eu não tivesse me odiado tanto!
Kamila, imagino o quanto é difícil esse tipo de situação. Talvez isso tenha ajudado a construir uma personalidade forte em você, como a mão que cria calos com o trabalho árduo. Ainda bem que você hoje consegue interpretar bem esses acontecimentos. Obrigado por compartilhar sua experiência.
Maravilhoso o texto. Me vejo 100% nele. Parabéns por conseguir expor essas situações cotidianas nossas atípicas de forma tão simples. Obrigado
Quanta profundidade, nesse texto! A peraltice da criança falando o que não deveria aos olhos dos adultos ; a criança lutando internamente para "entrar num padrão".