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Foto do escritorKamilla Brandao

Efeito Dunning-Kruger

O ano era 1970. O Brasil tornou-se tricampeão mundial de futebol, ao derrotar a Itália por 4x1, em uma final emocionante. Uma seleção de craques, com os principais astros dos times. Pelé do Santos, Jairzinho do Botafogo, Rivelino do Corinthians, Gérson do São Paulo...Todos camisas 10! Este também foi o ano da consagração e despedida de Pelé. Ele alcançou a marca histórica, e nunca superada, de ser o único jogador que ganhou 3 copas do mundo, mas essa final de 70 também foi seu último jogo internacional. Jairzinho saiu com o apelido de “Furacão”. Rivelino, como “Patada Atômica” após um golaço de falta contra a Tchecoslováquia. E, O Pelé, saiu como nosso “Rei”. Naquele ano, a segunda música mais tocada das rádios foi “Pra frente Brasil”.

Nesse ano, também tivemos o chamado “Milagre Brasileiro”. Um aumento muito significativo do PIB. O Brasil pegou empréstimos internacionais e, aliado a um aumento do preço das comodities, resultou em muito dinheiro livre na mão do Estado, que usou para construir a maior parte das obras de infraestrutura que temos hoje, pontes como a Rio-Niterói; ferrovias como a Vitória-Minas; hidrelétricas como Itaipu e Tucuruí. Um clima de prosperidade foi se instalando. Diversas indústrias foram atraídas e parecia que todo mundo poderia melhorar de vida. Um clima de ufanismo era visto pelas ruas, em parte incentivado pelo presidente da época, General Médici, com a campanha “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

Lógico que nem tudo são flores, mas a informação era muito mais centralizada. A copa de 70 foi a primeira a ser televisionada para o mundo, via satélite. A maior parte das pessoas nem tinha uma televisão em casa. Escutava notícias pelo rádio, lia manchetes nos jornais pendurados na banca, perto do ponto de ônibus. Era o governo da época que determinava o que seria dito, como seria dito e por quem seria dito. Havia um órgão do governo destinado a aprovar os conteúdos. Quem ousava contrariar era taxado de inimigo do país e “convidado” a se retirar.

A maior parte das pessoas se convenceu que tudo estava muito bem e que deveria estar muito feliz e agradecido. Era o clima da música “País Tropical” de Jorge Bem Jor, lançada em 1969. Uma música que exalta a felicidade do homem comum. Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Em fevereiro tem carnaval, eu tenho um fusca e um violão, sou flamengo e tenho uma nega chamada Tereza. Ainda, na música, descreve um gol feito pelo atacante Fio Maravilha, contra o Benfica. Aliás, um belo registro desse gol, porque as imagens se perderam. E nesse clima de samba, jovem guarda, bossa nova, carnaval, sol, praia e futebol era impossível não ser feliz nesse país, não é?

Bem, se chegou até aqui, deve estar se perguntando o que isso tudo tem a ver com autismo!

Na verdade, ainda preciso falar de mais um fato da época. Em 1971, Chico Buarque lança o álbum Construção. Um dos mais aclamados pela crítica. E, também, um dos mais críticos ao regime militar. Nele denuncia a falta de condições mínimas de trabalho para o povo nas grandes construções que se espalhavam pelo país. Falava de tristeza, por vezes disfarçada de desilusão amorosa, para satisfazer a censura. Mas uma música desse álbum me chama atenção desde que ouvi pela primeira vez.

Lembro bem, meu pai, que raramente estava em casa, passou vários dias sem sair, me mostrando seus vinis, falando sobre fórmula 1 e contando histórias incríveis sobre a vida. E, então, “Cotidiano” tocou. O ritmo rápido e constante das músicas desse disco me encantou, mas a letra de “Cotidiano” me prendeu, mexeu com algo dentro de mim. Era a história de um cara, ele tinha uma vida invejável pra muitos. Ele vivia na perfeição do Brasil, país tropical. Ele tinha uma casa, um emprego. Provavelmente seu time ganhou no final de semana. Ele tinha uma mulher devotada, que o amava e o desejava. Mas ele tinha uma tristeza, comedida, quase que como se não pudesse mostrar a ninguém, nem mesmo a sua fiel amada.

Como posso estar triste e reclamar da vida se tenho tanto? 

Todo dia eu só penso em poder parar/ Meio-dia eu só penso em dizer não/ Depois penso na vida pra levar/ E me calo com a boca de feijão.”

Eu sempre senti uma tristeza assim, desde quando posso me lembrar, e isso sempre me trouxe muita culpa. Mesmo nos momentos mais alegres do meu dia, era como se algo me lembrasse o tempo todo da fugacidade da vida. Em alguns momentos, tal qual um ciclo, essa tristeza aumentava transformando-se em extrema melancolia, me fazendo ensejar a brevidade da vida. A primeira vez que a tristeza tomou conta de mim eu tinha 8 anos. Passei uns 3 meses sentindo, de verdade, doenças que só existiam na minha cabeça. Não recebi diagnóstico ou tratamento, apenas intimação: todo mundo está triste, só finja que está bem e faça o que tem que fazer. Tal qual o homem na canção, pensava nas obrigações da vida e seguia resignada.

Que obrigações uma criança de 8 anos tem? Não ser um peso na vida de ninguém, não dar preocupação, não existir de forma que não fosse permitida. Me calei com a boca de guloseimas. Desenvolvi uma compulsão alimentar enorme. Mas a comida me ajudava a fingir que era uma criança feliz e despreocupada na frente de outras pessoas. Eu era a engraçada da escola. Até hoje uso o humor como máscara social. No ano 2000, eu tinha 9 anos e iria fazer 10. Ao mesmo tempo que lia tudo de Machado de Assis e escolhi Memórias Póstumas de Brás Cubas como o livro da minha vida, eu negociava páginas de revistas adultas com os garotos da escola, afanadas do esconderijo secreto do meu irmão. Fato que me fez bem popular na escola! Recebia convites para as festas de aniversário dos amigos da escola, mas eu não podia ir, minha mãe não deixava. O mundo era um lugar ruim! - Ela dizia. As pessoas só queriam me machucar, só ela me amava e me protegeria.

Também não me lembro de ter tido uma festa de aniversário. Essa festa de 10 anos eu planejei muito, imaginei tudo o que teria, toda a decoração, os CD’s que tocariam. Mas eu não tive a festa. Ninguém era bom o suficiente para ser meu amigo. Ela dizia que todos tinham inveja do quanto ela me amava, porque as mães deles não ligavam pra eles. Como meu aniversário é em julho, eu usava o álibi das férias para mentir que não fazia festa porque ganhava viagens incríveis do meu pai muito rico que tinha empresas espalhadas pelo mundo. Não, meu pai não era rico e, muito provavelmente, nunca saiu do país. Ele era só ausente mesmo.

Procurei diversos profissionais de saúde mental ao longo da minha vida. Somente um psiquiatra e uma psicóloga disseram que eu estava depressiva. Todos os outros insistiam que é um traço de personalidade típica dos “Asperger”/Altas Habilidades. É como se a inteligência acima da média nos desse óculos para ver a vida tal qual ela é. É a certeza de que as coisas são maiores do que pequenas conquistas individuais. Por isso, apesar de ocupar uma posição de sucesso, sempre há aquele torpor na alma. E o propósito?

Enquanto a maioria segue a música do Jorge, comemora o fato de poder ir a praia, ver o flamengo jogar e ter alguém pra amar. Uma minoria está na música do Chico, vivendo tal qual um zumbi, fazendo as coisas porque tem que fazer, pensativo. Pensando o porquê de todos estarem tão felizes e entretidos com futilidades enquanto o mundo desaba diante dos seus olhos. Teria eu algo errado? Eu queria acreditar, me entorpecer. Mas o que eu vi não pode ser “desvisto”, o que pensei não pode ser “despensado”. Enfim, vou encerrando aqui.

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