Quando eu era criança, lembro que era moda beber água e outras bebidas em copos de alumínio. As pessoas diziam que ficava gelado mais tempo. Os homens tinham canecas de alumínio com o logo dos times de futebol para tomar cerveja. E nos serviam sorvete em taças de sobremesa de alumínio. Todos pareciam adorar, menos eu. Pra mim, tudo que entra em contato com o alumínio fica com um gosto amargo terrível. Eu imaginava que todos eram iguais a mim e sentiam o gosto ruim, mas eram fortes e bebiam mesmo assim. Eu me esforçava muito para também ser forte. Até hoje um dos meus maiores medos é aparentar ser fraca. Eu descobri a menos de 5 anos que a maior parte das pessoas não sentem gosto algum com o alumínio!
Conheci pessoalmente, semana passada, um amigo que conhecia a tempos por texto e vídeo. Ele se abriu, mostrou as suas vulnerabilidades, chorou. Eu me conectei, mas não consegui chorar na sua frente, mesmo que sentisse toda a sua dor, de forma tão vívida, que era como se fosse física, terminei fazendo um comentário engraçado que o fez rir. Eu fui o caminho todo de volta aguentando firme, cara de paisagem, cheguei ao meu quarto e chorei, chorei muito. Se eu pudesse escolher um superpoder seria o de tirar a dor do outro.
Semanas antes, vi uma postagem em uma rede social que perguntava por que buscar um diagnóstico tardio de autismo, afinal a pessoa já viveu 30/40/50 anos com o transtorno, o que um laudo muda? Nós vivemos em um mundo que não foi feito para nós e apesar de conseguir se virar por um tempo, chega uma hora que o nosso meio começa a ruir. A gente fica se cobrando o mesmo desempenho de todos e pensa que é fraqueza não conseguir e imagina que é difícil pra todo mundo, que a gente que é reclamão. Mas enquanto todos estão correndo de shorts, nós estamos correndo com uma roupa de astronauta. Sabia que as roupas de astronautas pesam 130 kg, em média?
Não existe autismo que seja leve. Ele pesa, e muito. Nossas manias passam a ser vistas como esquisitices intoleráveis e imaturidade. Nossa necessidade por controle e rotina, como intransigência e birra. Nossa objetividade com as palavras, como grosseria e agressividade. Somos vistos como vilões e todos nos dão as costas, e começamos a acreditar que isso realmente é verdade. Sou um grande lixo que realmente sempre estraga tudo com todos? A solidão dói forte, mas o que me roubava as noites era a certeza, quase irredutível, que todos me viam como uma pessoa capaz de querer magoar a todos e que fazia isso de propósito, pois ficava feliz em ser uma má pessoa. Um dia normal era um que ouvia que não gostava de ninguém, ou que era perversa e gostava de ferir os outros. Cheguei a ir a um psiquiatra com a ideia de que talvez fosse psicopata, mesmo que a única pessoa a quem eu pensasse em fazer de vítima era eu mesma! Ele me disse que um psicopata dificilmente viria procurar ajuda preocupado em ferir alguém e que esse sentimento de culpa me tornava uma pessoa boa. Acho que foi a primeira vez que alguém disse que eu era uma boa pessoa.
Eu faço terapia desde criança, mas não tinha o diagnóstico de autismo. Tive diversos outros, mas nenhum explicava tudo. A única hipótese que explicava a minha vida, até então, era a de que eu era um lixo repulsivo que merecia ser odiada e viver isolada.
Um dia minha psicóloga de TCC, pediu para fazermos uma avaliação neuropsicológica, pois ela tinha uma hipótese diagnóstica. Eu topei por curiosidade de fazer os testes, mas eu já era um caso perdido na minha própria cabeça. Era época de natal, mas eu sabia que não iria ter um presente bom, tinha plena convicção que a avaliação confirmaria a minha natureza vil e incorrigível. O diagnóstico veio na primeira sessão de janeiro, como se ali a minha vida recomeçasse. Mas não... eu não acreditei. Procurei um bom psiquiatra na minha cidade e ele confirmou. Como pode ninguém ter notado antes, eu fui a tantos médicos a infância toda!? Nas férias, ainda sem acreditar, peguei um avião e fui a um especialista em São Paulo. Confirmado, 10 meses depois, em outubro. Desde esse dia venho aprendendo a fazer as pazes comigo, me perdoar, parar de me acusar e cobrar tanto.
O diagnóstico tardio chega, para muitos, em um momento que suas vidas estão destruídas, em uma hora que nosso corpo começa a adoecer, lembro que nessa época pegava uma virose atrás da outra, tinha sérios problemas autoimunes, muitas dores nas articulações, tive uma crise de ciático que me paralisou por algumas horas e até uma paralisia facial de uns 45 dias causada por um pico de cortisol. O diagnóstico chegou quando meu corpo já estava desistindo e minha mente vivia flertando com a ideia de abreviar o meu sofrimento e o das outras pessoas que tinham que me tolerar.
Então sim, vale a pena buscar um diagnóstico, mesmo que tardio.
Você não está sozinho!
Eu sempre fico intrigada com essa pergunta que nos fazem: o que muda um diagnóstico tardio? Muda muitas situações, a gente para de adoecer tanto, consegue tratar possíveis transtornos mentais, muda subdiagnosticos que são dados (ou apenas é mais um dos diagnósticos que temos) por sermos camaleões para se encaixar onde não é adequado. Se isso não é mudança, então nunca aprendi de verdade o significado.